Faz 20 anos que lancei o livro Náufrago da Utopia, na livraria Saraiva do
Shopping Morumbi, com a participação do ex-preso político Ivan Seixas, do presidente do Sindicato dos Jornalistas Audálio Dantas e do jornalista Paulo Nogueira no debate que antecedeu a sessão de autógrafos.
Foi o coroamento da reabilitação da minha imagem como revolucionário.
Tal revisão do passado acabou sendo uma consequência da luta pública que travei para que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça colocasse em pauta o meu caso (eu estava desempregado e em situação crítica, o que era a condição primeira da priorização de um julgamento, mas tal critério não estava sendo respeitado pelo colegiado). Minha batalha do tostão contra o milhão começou a repercutir na internet.
Ademais, o jornalista e escritor Marcelo Paiva inseriu uma referência desrespeitosa e gratuita sobre mim numa reportagem que fez para a Folha de S. Paulo. Ao polemizar com ele nas páginas do jornalão dos Frias pude mostrar o quanto havia de errado nas fantasias que circulavam na esquerda, começando pelo fato de que eram duas e não uma as áreas de treinamento guerrilheiro da VPR.
Foi minha primeira chance de expor o meu lado naquele episódio. Ao revelar que eu só conhecera a área 1 (desativada) e não estivera na área 2 (desbaratada pela repressão), coloquei um ponto de interrogação na mente de muitos companheiros que haviam acreditado piamente na versão mais falada.
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Eu no centro, como um dos imortais da Oban (nosso apelido para cartazes de procurados) |
Logo em seguida eu tomei conhecimento de um relatório do II Exército que continha a data exata em que a repressão obteve, a partir de uma prisão efetuada naquele dia, a localização exata da área 2 da Vanguarda Popular Revolucionária e iniciou os preparativos para o desencadeamento da Operação Registro: 18 de abril de 1970.
Como eu havia sido preso dois dias antes, foi uma comprovação de que a lenda sobre ter sido eu o delator era uma falsidade e uma ignomínia (companheiros que não aguentaram a tortura descarregaram suas vaciladas sobre mim, transformando-me num indefeso bode expiatório, já que, preso, não tinha como contestar as inverdades).
Pouco depois, Jacob Gorender, o maior historiador da luta armada brasileira, escreveu uma carta para a Folha de S. Paulo afiançando que eu era mesmo inocente daquela acusação infame.
Foi o fim de um pesadelo de 35 anos e a reconquista da minha credibilidade para travar as lutas que surgissem no meu caminho. Era um tempo de batalhas ideológicas muito inflamadas na internet, tendo eu e o Ivan Seixas sido os maiores defensores no Orkut da memória da luta armada e dos combatentes que a haviam travado.
Quando o guru dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, me atacou, aceitei o desafio e botei-o para correr numa polêmica de três artigos cada.
Já o comentarista de tevê Boris Casoy me acionou na Justiça Criminal por haver-me referido a ele como antigo membro do nefando Comando de Caça aos Comunistas. Penei para arrumar advogado que me defendesse gratuitamente, pois atravessava uma grave crise financeira, mas o Sindicato dos Jornalistas de SP acabou me socorrendo.
E um artigo sobre o CCC, publicado em 1968 pela Realidade, decidiu a questão: numa publicação de circulação nacional, Casoy era citado com membro da Juventude do CCC, portanto eu não cometia crime nenhum ao acreditar no que li na revista.
O juiz de primeira instância concluiu que eu estava protegido pela liberdade de imprensa e não houve recurso contra sua decisão.
Enfim, o lançamento do Náufrago da Utopia ocorreu num momento em que eu completava uma guinada na minha vida passando a perseguir sem entraves os objetivos que durante 35 anos não pude buscar, por causa da estigmatização que sofria.
Depois que os caminhos se abriram, ainda travei lutas menores, além de uma que pareceu a concretização de uma visão de quando, lá pelos meus 13 ou 14 anos, encontrei numa biblioteca circulante aquela que seria minha primeira leitura de um livro sobre política adulta: A tragédia de Sacco e Vanzetti, do Howard Fast. Fiquei, evidentemente, indignado com a injustiça cometida contra aqueles dois anarquistas italianos nos EUA.
Em 2008 o Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti pediu-me ajuda e eu aceitei sem pestanejar.
Nunca me oferecia para atuar em episódios que estavam obtendo destaque na mídia (não queria ser chamado de caçador de holofotes), mas, quando estava em condições de prestar um grande auxílio a companheiros que recorriam a mim, sempre atendia a suas solicitações.
Via isto como era uma obrigação para um veterano que participara de uma luta com enorme letalidade do nosso lado. O mínimo que eu podia fazer para honrar o sacrifício dos companheiros era nunca recusar ajuda para um companheiro dela necessitado.
Foram três anos (2008/2011) de uma luta extremamente desigual, contra a imprensa burguesa e o imenso poder de fogo de um país do primeiro mundo, que, ademais, jogava pra lá de sujo. Eu escrevia artigos quase diários, refutando as falácias da grande imprensa e pleiteando espaço para apresentar o contraditório, quase sempre negado.
Ademais, atravessei o país fazendo palestras e participando de debates sobre o Caso Battisti. Meus textos eram publicados por vários sites e portais, então não seria pretensioso dizer que, na web, tive um papel destacado para a mudança de posição dos companheiros.
Talvez minha melhor contribuição haja sido ter-me tornado um repositório das informações de cocheira: por ser também jornalista e haver travado minhas polêmicas protegendo ciosamente tudo que tivesse obtido em off, colegas da grande imprensa começaram a me passar as informações sobre os círculos do poder que não podiam publicar em seus próprios veículos.
Inclusive uma valiosíssima: a de que o Lula, em fins do segundo mandato, não mexeria uma palha caso o STF, sozinho, extraditasse Battisti. Mas, se o abacaxi caísse na mesa dele, vetaria a extradição.
Graças a isso lutamos até o último argumento para que a decisão do caso não se desse no Supremo, no qual perdíamos todas as votações por 5x4, mas pelas mãos do Lula. O resto é História.
Gostaria de ter feito mais, contudo não consegui o respaldo da esquerda organizada, que evitaria muitos vexames se aceitasse as estratégias que eu lhe propunha. Um consolo foi ter, no blog Náufrago da Utopia, combatido Jair Bolsonaro durante todo o ano eleitoral de 2018 e ao longo do seu famigerado mandaato.
Quando muitos se retraiam, temendo uma Operação Jacarta (massacre de opositores na Indonésia), não alteramos em uma vírgula sequer a linha editorial do nosso blog.
Concluindo: não daria para falar sobre o livro Náufrago da Utopia sem lembrar o contexto no qual foi escrito e os desdobramentos que gerou. Em termos literários, ele foi criado sob pressão máxima, pois devia vários aluguéis e estava ameaçado de despejo.
O adiantamento que a Geração Editorial me prometeu contra a entrega do texto integral fez com que o terminasse em apenas 5 sofridas semanas. Para escrevê-lo fui obrigado a procurar informações sobre o destino de vários companheiros, o que há muito evitava fazer porque, quando ficava sabendo que haviam tido uma morte terrível nas garras da repressão, isto me deprimia demais.
Então, parte do seu encanto advém de ser um livro escrito sob uma tremenda carga emocional, algo como a Autobiografia Precoce do Eugene Evtuchenko.
Uma decisão importante que tomei foi a de escrever com a isenção de um historiador, jamais escondendo ou maquilando episódios em que os personagens a mim simpáticos não se comportaram à altura do que deles eu esperava.
Sempre detestei o culto à personalidade. A grandeza dos personagens históricos que a tinham em nada diminuía com o divulgação de seus maus momentos, pois estavam, como todos nós, longe de serem infalíveis. Isto os fazia mais humanos. E a verdade é revolucionária.
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A defesa dos direitos humanos é uma prioridade do blog Náufrago da Utopia. |
Por que dividi o livro em três partes, as duas primeiras narradas na terceira pessoa e só a terceira parte na primeira pessoa? Foi uma forma de escapar ao constrangimento de relatar as torturas que sofri como quem as sofreu. Adotando a terceira pessoa, as torturas se referiam ao personagem Júlio, não a mim. Senti-me melhor assim, embora saiba que ser torturado por um estado policial não é vergonhoso, muito pelo contrário. Mas nem sempre as racionalizações prevalecem sobre as emoções.
O Náufrago da Utopia foi um livro por muito tempo sonhado, daí a rapidez com que foi criado. Então, o uso da terceira pessoa nas partes iniciais também servia para descaracterizá-lo, no início, como autobiografia.
O foco que eu escolhera fora mostrar oito jovens estudantes iniciando-se nos caminhos da revolução, mas da forma como tais personagens viam os grandes acontecimentos em cada momento. Ou seja, não como passado recordado mas sim como presente acontecendo. A primeira parte, com todo seu esforço de contextualização, é um painel sobre o movimento estudantil, a ditadura, a luta armada.
Depois, palestrando em escolas secundárias, tive a satisfação de ouvir alunos comentando que não sabiam nada sobre a ditadura, mas, depois do lerem meu livro, começaram a interessar-se pelo assunto. Fiquei emocionado.
Quando já havia terminado as duas primeiras partes, me veio a ideia de adotar a primeira pessoa na parte final. Por quê? Para que ela fosse fiel ao meu ser daquele momento.
Eu não era mais o idealista ingênuo que havia sido quase destruído pela repressão nem o jornalista que adotava o pseudônimo de André Mauro para evitar problemas com a censura. Assumindo meu nome e minha história, estava recuperando a credibilidade. Tinha decidido ser, até o fim dos meus dias, um combatente da palavra, que em determinadas circunstâncias é mais eficiente do que as armas.
Aos jovens que me procuravam para saber qual minha opinião sobre uma nova luta armada, sempre mostrei cruamente como a dita cuja pode ser trágica quando a correlação de forças nos desfavorece tal qual agora.
Aconselhava-os a, antes de mais nada, irem aonde o povo estava, arregaçando as mangas e efetuando a laboriosa tarefa de politização do povão. Os voos maiores dependeriam do seu desempenho nessa etapa de acumulação de forças, pois hoje a correlação está totalmente desfavorável a nós
Encerro este artigo atual com o parágrafo final do livro de 2005:
"As cruzadas para mudar o mundo são repletas de armadilhas e sofrimento. Espero que ninguém mais entre de novo numa luta sanguinária com a ingenuidade do meu grupo secundarista em 1968. Mesmo assim, o mundo precisa ser transformado".
Desde então, o que mudou foi a premência da transformação do mundo, pois estamos sob forte ameaça de extinção da espécie humana pelas alterações climáticas. (por Celso Lungaretti)